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Uma esfera armilar de papelão

 



Fig. 1 Esfera armilar construída em papelão que permite determinar o horário de nascimento e ocaso de planetas e do sol. Nesta figura: Cm é o círculo meridiano, S é o sol, Ct é o círculo horário, Ps é a Terra onde o observador está localizado. Ce é o círculo da eclíptica. Essa foto foi tirada no dia 4/3/2023 às 12:23 do horário local, quando o sol projetava uma sombra vertical sobre Ps correspondendo às 12:00 do chamado "tempo solar verdadeiro".

Esferas armilares são conhecidas hoje em dia como enfeites de sala ou de jardim. Trazem um conjunto de círculos concêntricos sobre uma base e uma seta que aponta para uma direção, atravessando os círculos internos. Poucas pessoas sabem, mas esferas armilares foram os computadores analógicos da antiguidade (Egler 2006). Com elas é possível, dentro de certa acuidade, determinar a posição de nascimento, ocaso e trânsito de estrelas, planetas, da lua e do sol de maneira "instantânea". Isso porque elas representam o céu e a posição de planetas e do sol desde uma perspectiva "geocêntrica", isto é, tendo o observador como centro. O observador está ancorado ao seu "meridiano local". É um "modelo 3D" como uma extensão dos "astrolábios" ou representações 2D antigas da esfera celeste.

Recentemente, o artigo "Design and Construction of an Armillary Sphere for Astronomy Teaching" ou "Projeto e construção de uma esfera armilar para o ensino da astronomia"  (DOI: 10.13140/RG.2.2.36568.16641/1) foi disponibilizado para interessados na construção. Esse trabalho pode ser lido em inglês no ResearchGate no endereço: 

Neste post, comentamos alguns aspectos desse modelo que pode ser construído em papelão e materiais de fácil aquisição.

Materiais e construção

A Figura 1 ilustra a esfera finalizada, porém, foram várias as etapas para sua construção, como pode ser vista na Figura 2. Toda a estrutura foi construída em papelão grosso do tipo "B-flute" de 6,35 mm de espessura. Esse material é utilizado em caixas de transporte de frutas, que são descartadas em supermercados.

Fig. 2 Imagens das etapas preliminares de construção da esfera armilar utilizando papelão grosso, do tipo "B-flute" de dupla camada de 1/4" ou 6,35 mm. 

Sua facilidade de manuseio - cortes, dobras e colagens - tem como desvantagem o fato de ser facilmente danificado pela água. O material original foi revestido inicialmente com papel colorido. Uma esfera de isopor representa a Terra ou a posição do observador no centro do modelo.

Fig. 3 Diagrama esquemático das partes que compõem a esfera armilar que é apoiada por um pedestal.

As diversas partes que compõem a esfera estão representadas na Figura 3. Cada parte segue a convenção de nomes abaixo:

Cm: Círculo meridiano
Ct: “círculo do tempo” (Escala de ângulo horário)
Cc: Colura
Ps: Esfera de isopor (Terra)
Ch: Círculo do horizonte
Fc: grampos de fixação
Cx: Eixo celeste
Ce: Círculo da eclíptica
Fp: Pivô/grampo de fixação do polo
Cq: Círculo equatorial

O eixo celeste é feito de um palito que é usado para transpassar a esfera de isopor representando a Terra. O círculo meridiano e o equador celeste são fixos e sustentados por um pedestal, que é montado sobre uma base. Dentro deles, foram colocadas a eclíptica, a chamada "colura" ou círculo ortogonal ao equador celeste e o círculo do equador celeste. Sobre esses círculos são gravadas inscrições e gradações que permitem determinar a posição de um objeto celeste em "coordenadas equatoriais". As constelações, por exemplo, podem ser representadas sobre o círculo da eclíptica.

Fig. 4 Detalhe do interior da esfera armilar construída em papelão: o pivô do eixo celeste é feito com pedaços de rolha de cortiça.

O acabamento da esfera foi feito com folhas de EVA de cores diversas para representar cada um dos círculos e partes mostradas na Figura 3. Cola branca simples foi usada para fixar todas as partes. Alguns parafusos foram adicionados aos círculos ligados ao pedestal da base para melhorar a estabilidade do conjunto. O pivô do eixo celeste permite girar os círculos internos pela fixação nos grampos de polo usando pedaços de rolha de cortiça (Figura 4). 

Diagramas com as medidas de todos os círculos, grampos, pedestal e base podem ser consultados na referência do artigo acima.

Operação da esfera

Fig. 5 Demonstração do sistema de coordenadas topocêntrico pela remoção dos círculos móveis.

A esfera construída permite ilustrar conceitos fundamentais de astronomia de posição, em particular as lições de transformação de sistemas de coordenadas. As mudanças de estações podem ser estudadas, pela mudança no ângulo de elevação do sol conforme cada estação. 

Os círculos fixos representam o sistema topocêntrico do observador, enquanto os círculos móveis representam o sistema de coordenadas equatorial. A conexão com o tempo se dá pelo círculo horário que é fixo e permite ler o "ângulo horário" de um objeto ou a distância angular - medida em horas e minutos - em relação ao meridiano central. O ponto vernal é representado por uma das junções do círculo da eclíptica e do equador celeste. O ângulo de posição lido sobre o círculo horário representa o "tempo sideral" do local. O tempo solar verdadeiro é simplesmente o ângulo horário do sol representado na eclíptica. O tempo solar médio pode igualmente ser lido ao se introduzir o sol fictício sobre o círculo da eclíptica. Tudo isso é facilmente visualizado na esfera armilar.

A Figura 5 ilustra como é possível remover os círculos móveis e fazer uma demonstração do sistema de coordenadas topocêntrico. Nesse sistema, o ângulo de azimute (Az) e elevação (A) são lidos a partir de Ch e Cm respectivamente. 

Representações dos planetas e do sol são fixadas na eclíptica que gira com o eixo celeste (Figura 6). Uma representação dessa é mostrada na Figura 6, que mostra o nascer (ou ocaso) de um planeta. Esses são fixados sobre a eclíptica e as coordenadas no sistema topocêntrico podem ser geradas se a chamada "longitude eclíptica" de cada planeta for conhecida. Essa longitude é usada para posicionar o planeta sobre a eclíptica pela leitura direta do ângulo de longitude. A posição de outras estrelas do céu pode ser fixada pelo uso de suportes fixos nas esferas móveis que localizem a latitude e ângulo horário do objeto a partir dos círculos graduados gravados diretamente sobre os círculos móveis.  

Fig. 6 Nascimento de um planeta como representado pela esfera armilar de papelão. A posição em azimute é lida diretamente sobre o círculo do horizonte.

Os antigos procediam desta forma: da medida do azimute no momento do nascer ou ocaso de um planeta, eles determinavam a longitude eclíptica. Essa poderia ser "integrada" ou avançada no tempo porque se conhecia a taxa com que os planetas avançavam na esfera celeste, o que permitia determinar os momentos de nascer, ocaso e passagem meridiana para qualquer data e horário no futuro. A operação da esfera armilar é instantânea: não existe processamento, pois ela representa fielmente as posições dos planetas e do sol no céu.

Uma avaliação inicial que é explicada no artigo original encontrou um erro máximo na determinação dos instantes de ocaso e nascimento da ordem de 10 minutos. Erros médios são da ordem de 2 minutos. Esse erro pode ser reduzido se materiais mais rígidos forem usados com uma esfera de maior diâmetro. Uma opção é construir a esfera em MDF ou outro material menos sujeito a dobras do que o papelão. Sabe-se que esferas armilares de elevada precisão foram construídas até o início do século 17 e tinham erro da ordem de minutos de arco (Wesley 1978). Foi por meio delas que foi possível determinar que as órbitas dos planetas não eram círculos, mas elipses.

O uso da esfera permite aprender conceitos de astronomia de posição de uma maneira fácil. Como é uma representação 3D, diversos conceitos de astronomia esférica podem ser visualizados. Sua construção é simples e, por usar materiais fáceis de encontrar, seu custo final é irrisório. 

Referências

EGLER, Robert. Measuring the Heavens: Astronomical Instruments before the Telescope. Journal of the Royal Astronomical Society of Canada, Vol. 100, Issue 1, p. 37, 2006, 100: 37. Link: https://adsabs.harvard.edu/full/2006JRASC.100...37E 

WESLEY, Walter G. The accuracy of Tycho Brahe's instruments. Journal for the History of Astronomy, 1978, 9.1: 42-53. Link: https://adsabs.harvard.edu/full/1978JHA.....9...42W/0000044.000.html 






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