04 janeiro 2023

Recursos em astronomia para usar em casa (TESS)

 

Da mesma forma como nossa vida se influenciou pelas plataformas digitais e mídias socias da internet, a Astronomia é hoje uma "comunidade virtual", onde pouco importa possuir um instrumento para fazer contribuições relevantes, desde que se participe da comunidade certa. Muitas comunidades de pesquisa disponibilizaram um grande número de recursos de acesso a dados gerados por instrumentos profissionais. Esses recursos podem ser usados para se fazer descobertas. 

Assim, nasce a possibilidade do astrônomo amador fazer contribuições, mesmo sem a necessidade de qualquer equipamento, exceto um computador com acesso à internet. Um exemplo prático é o banco de dados MAST (Mikulski Archive for Space Telescopes, acessível via https://mast.stsci.edu) que reúne milhares de entradas de dados sobre corpos celestes obtidas por inúmeros telescópios, inclusive espaciais.

Dentre os telescópios espaciais está o TESS (Transiting Exoplanet Survey Satellite, informação disponível em https://tess.mit.edu/science/) ou satélite de buscas por planetas em trânsito. A missão espacial TESS é uma continuação da missão Kepler responsável pela descoberta de milhares de planetas alienígenas ou "exoplanetas". Esse é o nome dado a planetas que orbitam outras estrelas. Um dos objetivos do TESS é achar planetas pequenos (com diâmetro menor que 4 diâmetros da Terra) em torno de estrelas suficientemente brilhantes.

Figura 1 Como se descobrem planetas alienígenas. Uma redução de brilho é observada quando um planeta passa na frente do disco da estrela. Imagem segundo [1]. Para ter eficiência, é necessário dispor de um instrumento que monitore constantemente o brilho de amplos setores no céu. Esse é o caso da missão TESS.

A TESS usa o método dos "trânsitos". Quando um planeta passa na frente de uma estrela, ocorre uma queda de luz (Fig. 1). Essa redução de brilho é detectada pelo telescópio. Na missão TESS 4 câmeras de 10 cm de diâmetro vasculham o céu periodicamente e produzem registros de brilho ao longo de vários dias. A redução observada de brilho é diretamente proporcional ao diâmetro do planeta alienígena. Dessa forma, quanto maior o planeta em relação à estrela, maior a chance de ele ser descoberto. Por outro lado, para um determinado diâmetro de planeta, quanto menor a estrela que o abrigue, maior a chance também de descoberta.

Há possibilidade real de astrônomos amadores contribuírem na descoberta de novos planetas usando dados da TESS, pois todos os seus dados são públicos. Uma maneira de se começar a analisar esses dados é por meio do projeto "Planet Hunters TESS" [1], que é um projeto voltado para "cidadãos cientistas". Ali é possível aprender a analisar curvas de brilho, discutir possíveis casos de interesse ou aprender sobre curvas de estrelas variáveis. Nesse último caso, é grande a chance de se topar com uma estrela variável ou binária eclipsante. Há milhões de entradas disponíveis.

Ao longo de vários posts, vamos discutir aqui as perspectivas de uso desses dados. Neste primeiro, mostramos um pouco sobre como é possível usar o MAST para acessar dados do TESS. Com acesso à internet é possível imediatamente visualizar dados de curva de luz. Aqui apresento um procedimento geral para isso. 

Acesso e análise dos dados do MAST da estrela π Mensae.


Figura 2 Campo de busca da estrela TIC 261136679 para acesso aos dados do telescópio TESS.

Como vamos acessar dados do TESS, precisamos conhecer como é feita a catalogação das estrelas na base de dados desse telescópio. Toda estrela em seu catálogo é registrada como um número com a sigla TIC (que significa TESS Input Catalog ou “catálogo de entradas TESS”) na sua frente. Por exemplo, um planeta foi descoberto na estrela π Mensae [2]. A estrela que abriga o planeta recebeu a designação TIC 261136679, embora seu nome também possa ser achado como “π Mensae” (ou SAO 258421, HD 39091  etc). Ao se entrar no catálogo [1], simplesmente copiamos “TIC 261136679” para o campo “end enter target” no campo superior direito e clicamos “search” como mostra a Fig. 2. O resultado da busca é uma página parecida como a Fig. 3.

Figura 3 Resultado da busca. A imagem da estrela é vista na parte direita.

Como mostrado nessa figura, restringimos o acesso para apenas dados TESS clicando-se na caixa disponível sob o título “Mission” na parte esquerda da tela. A imagem da estrela é mostrada na parte direita. Esse mapa é, de fato, uma foto que pode ser ampliada. Na parte central podemos ver vários segmentos de dados correspondentes às campanhas de observação realizadas em que dados do campo contendo a estrela procurada podem ser encontrados. Sob o título de coluna “Actions”, podemos clicar no botão com o símbolo:
que dá acesso a uma provável curva de luz já disponibilizada. Ao se seguir esse caminho, conforme a rapidez de sua conexão, aparecerá uma janela como mostrada na Fig. 4.

Figura 4 Visualizador de curva de luz.

Há duas opções de dados como mostrado na parte direita. O bloco em laranja (PDCSAP) corresponde aos dados processados. O bloco em verde/azul (SAP) são dados não processados. Deve-se escolher os dados processados. É possível alterar alguns parâmetros do gráfico da curva de luz central usando as opções que aparecem na parte esquerda. Para a série temporal (curva de luz) processada, o gráfico correspondente ao conjunto de número 14 é mostrado na Fig. 5. 

Figura 5 Dados processados do TESS para um dos setores em que a estrela π Mensae pode ser encontrada. As quedas de luz são produzidas por eventos de trânsito de um exoplaneta [2].

Esse gráfico mostra a variação de brilho (medido em fluxo de número de partículas por segundo) ao longo do tempo medido em dia. Há diversas quedas de luz observadas em intervalos regulares. O faixa central sem dados corresponde ao período de tempo em que o telescópio TESS estava transmitindo dados à Terra e, por isso, não foram tomadas medidas nesse intervalo. O tempo é medido em BJD (datas Julianas-Besselianas) diretamente relacionados a intervalos de tempo em horas e dias terrestres. 

As quedas observadas de luz na Fig. 5 são eventos de trânsito do exoplaneta. As variações na grande massa de dados entre os fluxos 1.46418 e 1.46504 são oscilações naturais no brilho da estrela ou resultado de incertezas no sensor. Essas oscilações determinam o limite de sensibilidade do telescópio TESS, pois, se as quedas observadas na Fig. 5 estivesse todas dentro desse intervalo, o planeta não teria sido observado. 

O intervalo de tempo entre as quedas é o período de trânsito do planeta que corresponde ao seu período orbital. O gráfico no MAST (Fig. 5) é interativo. Podemos medir o período simplesmente calculando a diferença nos tempos (eixo x) entre dois trânsitos sucessivos. Por exemplo, há uma queda mais ou menos em BJD 12,748 e outra imediatamente anterior em BJD 6,482. A diferença corresponde ao período de 6,26 dias. Para testar a validade desse tempo, abrimos a opção “phase folding” que realiza uma “dobradura de fase” na curva de luz de forma a empilhar dados no tempo conforme um período de tempo fornecido. Para isso, clicamos na opção “Phase folding” na parte esquerda do gráfico da Fig. 4, inserimos o valor 6,26 no campo “Period (days)” e clicamos em “enable phase folding”. O resultado é mostrado na Fig. 6. As quedas estão todas “encavaladas” em um mesmo intervalo de fase que se inicia em zero. Dessa forma confirmamos a descoberta de um planeta alienígena! Como no caso de TIC 261136679, existem milhares de outras estrelas que aguardam a contribuição de pessoas para identificar essas quedas de brilho nos gráficos. Esse é o objetivo do programa [1].

Figura 6 Resultado da operação de “dobradura de fase” com inserção do período de trânsito observado. 

A estrela π Mensae (mag. Visual 5,67) é classificada como uma estrela do tipo G0V que dista 18,2 parsecs da Terra, ou quase 60 anos-luz. Ela tem massa muito próxima a do Sol, assim como um raio parecido com ele. Portanto, se estivéssemos no sistema de π Mensae, nosso sol teria brilho aparente apenas um pouco inferior.

De fato, o sistema de π Mensae abriga pelo menos dois planetas, chamados b e c respectivamente. O período de c é 6,26 dias (segundo [2], 6,2679±0,00046 dias), enquanto que b tem período muito maior, da ordem de 2093 dias. O planeta c dista 10,2 milhões de quilômetros da estrela e tem uma massa igual a 4,82 massas da Terra [2], ou seja, é uma “superterra”. Para se ter uma ideia, Mercúrio dista em média 62 milhões de quilômetros do Sol. Por estar muito próxima da estrela, a superterra π Mensae c é um verdadeiro inferno. Um terceiro planeta “d” foi anunciado [3], mas permanece não confirmado.

Outros planetas confirmados são:
  • TIC 298663873 [4]: com período de 260 dias, ele somente teve um trânsito pelo TESS. Sua descoberta, feita por cientistas cidadãos, permitiu o monitoramento do trânsito quase que imediatamente. O período foi determinado por meio de medidas de velocidade radia.
  • TIC 307210830 [5]: aqui TESS revelou um sistema triplo, onde os componentes internos são rochosos e têm massas semelhantes à da Terra.
De uma lista com mais 280 entradas somente obtidas com dados do TESS. O leitor consegue encontrar no MAST as curvas de luz para os exemplos acima?

Conclusão

O exemplo aqui apresentado mostra que há mais chances de se descobrir algo novo e relevante nesses dados do que por meio de telescópios que o astrônomo amador tenha em sua casa, não importa o quão caro e equipado ele seja. Por outro lado, quem tem equipamentos sofisticados e munidos de fotosensores pode se envolver em campanhas de confirmação de variação de brilho de muitos alvos do TESS como, por exemplo, o caso TIC 298663873 que é um exoplaneta de longo período. 

Foi-se a época em que a Astronomia dependia crucialmente de instrumentos de amadores. Hoje, ela pode se beneficiar das pessoas, porém, muito mais por meio do acesso, análise e manipulação de um volume enorme de dados públicos obtidos por instrumentos profissionais e missões espaciais. Esses dados estão catalogados e calibrados, uma condição imprescindível para que tenham valor científico.

Entretanto, para que seja possível fazer descobertas, é preciso conhecimento no acesso, análise e interpretação dos dados. Nesse sentido, vamos apresentar como isso pode ser conseguido em uma série de posts futuros. 

Referências


[2] Huang, C. X., Burt, J., Vanderburg, A., Günther, M. N., Shporer, A., Dittmann, J. A., ... & Rinehart, S. A. (2018). TESS discovery of a transiting super-Earth in the pi Mensae System. The Astrophysical Journal Letters, 868(2), L39.


[4] Dalba, P. A., Kane, S. R., Dragomir, D., Villanueva, S., Collins, K. A., Jacobs, T. L., ... & Villaseñor, J. N. (2022). The TESS-Keck Survey. VIII. Confirmation of a Transiting Giant Planet on an Eccentric 261 Day Orbit with the Automated Planet Finder Telescope. The Astronomical Journal, 163(2), 61.

[5] Cloutier, R., Astudillo-Defru, N., Bonfils, X., Jenkins, J. S., Berdiñas, Z., Ricker, G., ... & Villasenor, J. (2019). Characterization of the L 98-59 multi-planetary system with HARPS-Mass characterization of a hot super-Earth, a sub-Neptune, and a mass upper limit on the third planet. Astronomy & Astrophysics, 629, A111.

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