04 junho 2024

Estadão publica texto sofrível em Astronomia usando IA.

 

Quase nunca me disponho a comentar textos ou informações postadas na rede com assuntos de Astronomia. Desta vez, o cálice transbordou. O texto: 
Céu terá um ‘desfile de planetas’ nesta segunda: o que será possível ver da Terra? (disponível aqui em um link de 2024: https://www.estadao.com.br/ciencia/ceu-tera-um-desfile-de-planetas-nesta-segunda-o-que-sera-possivel-ver-da-terra/)
publicado pelo jornal "O Estado de São Paulo" chamou minha atenção pelo qualidade do resultado do uso de "sistemas de IA" (Inteligência Artificial) na tradução de seu original, supostamente escrito por um tal Amudalat Ajasa do jornal "The Washington Post".

Analiso seu conteúdo no que segue, conforme o texto originalmente publicado em 3/6/2024.

Análise

Não me atreverei a culpar o autor pela qualidade do texto original, assumindo que os problemas encontrados nele se devem ao uso da ferramenta de tradução. O objetivo da reportagem era relatar um suposto "alinhamento de planetas" que ocorreria no dia 3/6, evento que, se imagina, deve atrair a atenção do público.

O texto começa assim:
Nesta segunda-feira, 3, meia dúzia de planetas formarão uma espécie de linha no céu, mas não aposte em ver todos eles ao mesmo tempo. Você terá sorte se vir apenas dois.
Há vários problemas aqui. A frase leva o leitor a acreditar que o tal "alinhamento" somente ocorrerá no dia 3 e que os planetas "formarão uma espécie de linha no céu". Vai além ao dizer que "você terá sorte se vir (sic) apenas dois (planetas)". 

A figura acima representa o céu como visto desde Brasília/DF no dia 3/6 as 5:40. Ele ilustra o que o observador teria visto na data do alinhamento proposto pelo texto. Essa configuração permanecerá no céu por vários dias, antes e depois do dia 3/6.

De fato, quatro planetas são visíveis além da Lua. Por que o autor do texto diz que "se tiver sorte verá apenas dois"? Uma hipótese é que, provavelmente por ter sido escrito por alguém que vive no hemisfério norte, as condições de visibilidade são diferentes. Ou seja, a declaração feita não serve para observadores do hemisfério sul.
Durante o que tem sido chamado de “desfile de planetas”, Júpiter, Mercúrio, Urano, Marte, Netuno e Saturno formarão uma inclinação no céu - com uma lua crescente aparecendo no meio da fila. Quantos desses planetas você realmente conseguirá ver? Embora o nome sugira que você poderá ver toda a formação, apenas dois serão visíveis a olho nu.
O que era uma "linha" agora virou uma "inclinação no céu". Mas o que isso significa? Como vimos, dependendo de onde o observador se localizar, será possível ver quatro planetas e não dois como declarado. Dependendo da latitude do observador, ele será um alinhamento ortogonal ou não à linha do horizonte. Além disso, a lua que é vista não é crescente, mas minguante! O autor ou IA não sabem que luas crescentes só ocorrem ao entardecer e o tal alinhamento ocorre antes do nascer do sol.
O espetáculo “não é o que parece ser”, diz Noah Petro, cientista do projeto Lunar Reconnaissance Orbiter da Nasa, a agência espacial americana. “É como jogar um cobertor molhado em todo o ‘desfile de planetas’ no céu noturno”, compara.
É difícil também entender o que esse trecho significa, além da tentativa de conferir autoridade às declarações feitas pela citação de entrevistas de "especialistas" da NASA - provavelmente a única autoridade que faz efeito em textos jornalísticos desse tipo com o público. 

Se "não é o que parece ser", o que é então? Qual o sentido de se "jogar um cobertor molhado em todo o desfile de planetas"? Onde está o incêndio? Espero que o leitor não se sinta diminuído em seu intelecto por não ter entendido o sentido dessa frase, pois ela realmente não tem.
Marte pode ter uma leve coloração vermelha e Saturno será um ponto brilhante no céu, afirma Petro. Os especialistas da Nasa, no entanto, querem pedir aos observadores do céu que controlem suas expectativas.
O planeta Marte sempre é avermelhado e Saturno, por ser um planeta muito distante (assim como todos os corpos celestes estelares) sempre será visto como "um ponto brilhante no céu". É evidente que a informação transmitida pelo texto é redundante e, por isso, inútil.

Agradecemos também a preocupação dos "especialistas" da NASA em pedir para que controlemos nossas expectativas, porém, não será pela leitura de textos desse nível que isso será conseguido.
Os planetas que estão mais próximos do Sol têm anos comparativos mais curtos, orbitando ao redor dele mais rapidamente em relação aos planetas mais distantes, que têm anos mais longos e mais distância a percorrer.
O que ele quis dizer é que planetas mais próximos têm revoluções orbitais mais curtas do que os planetas afastados. Medidos em termos de "anos terrestres" os "períodos orbitais" são mais longos ou mais curtos em relação a um ano. Mas em si, planetas não "tem anos". 
Mercúrio e Júpiter estarão tão baixos no horizonte que não serão visíveis. Urano estará fraco. Netuno nunca é visível a olho nu porque é muito tênue para ser visto pelo olho humano, diz Petro. Na verdade, Netuno será mais de seis vezes mais escuro do que Urano, de acordo com a Nasa. Seria necessário um telescópio para ver Urano e Netuno - os dois planetas mais distantes da Terra.
O erro continua a ser repetido de que Mercúrio e Júpiter "não serão visíveis". Mas a frase mais engraçada do texto é, sem dúvida, "Urano estará fraco". Ora, é difícil conceber fraqueza ou fortaleza em corpos celestes. O verbo também está mal colocado. O que quiseram dizer foi que "o brilho do planeta Urano é fraco" - sempre é, nunca "estará" pelo fato desse ser um planeta muito distante.  De resto, Urano continua forte e muito bem, obrigado.

Em ocasiões excepcionais é possível que alguém de vista muito boa, em um céu limpo, sem lua e longe das luzes das cidades consiga ver Urano de relance, sem o uso de telescópios, ao contrário do que é afirmado no texto. É também difícil entender o que quiseram dizer com planetas "mais escuros do que outros". O pobre Netuno é quantificado como 6 x mais escuro que Urano! A intenção foi dizer que Netuno é menos brilhante do que Urano. O grau de "escuridão" é medido pelo "albedo" que nada tem a ver com brilho: é a percentagem de luz refletida por uma superfície em relação à luz incidente. Assim, um planeta pode ter albedo menor que outro, mas, mesmo assim, ser mais brilhante do que esse último.
Não é qualquer telescópio que funcionaria para Netuno e Urano, acrescenta ele, mas um “telescópio do tamanho de um pagamento de hipoteca”.
Também aprendemos com os embaixadores da NASA citados no texto sobre tamanhos de telescópios. Precisamos de um telescópio do "tamanho de um pagamento de hipoteca" para ver Netuno e Urano. Se alguém souber o que isso significa, agradeceria receber a explicação. Exageros a parte na hipoteca (não seriam telescópios cujo preço é do tamanho de uma hipoteca?), tanto Urano como Netuno podem ser visto com binóculos... 
Haverá outra oportunidade de ver potencialmente os mesmos seis planetas em outro evento celestial antes do amanhecer em 28 de agosto, de acordo com Petro, embora Netuno e Urano não sejam visíveis a olho nu.
O leitor deve se preparar para não perder "potencialmente" o evento único do dia 28 de agosto quando então Netuno e Urano não serão visíveis a olho nu.

Conclusão

Com base no declarado no final do texto:
O conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial,
é difícil conceber que tipo de revisão foi feita, mas me parece que ela não deu resultado, ainda mais por ser conteúdo vendido ao leitor (sim, ele é pago).

Do jeito que está escrito, o texto é um apanhado de frases mal colocadas e sem sentido, que desinformam o leitor.

Imprestável como publicado na data, acaba sendo um desserviço à divulgação científica, pois é fruto de uma crença errônea de que sistemas de IA poderão substituir humanos. Ora isso não é possível, mesmo com humanos sem qualquer conhecimento em Astronomia, mas é resolvido no texto pelo apelo à autoridade da NASA...

E se em Astronomia, que é conhecimento tão preciso, é possível embaralhar ideias e desinformar, o que diríamos com outros assuntos menos "exatos" publicados por muitos veículos de informação no presente?

E vejam que a "revolução de IA" mal começou.

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