02 dezembro 2013

A questão dos nomes astronomia, astrofilia e o significado da astronomia amadora.

D. Pedro II (1825-1891)
O dia 2 de Dezembro é conhecido nacionalmente como 'dia do astrônomo'. Esse é também o dia de nascimento de Pedro de Alcântara ou D. Pedro II que é reconhecido (merecidamente) como patrono da astronomia brasileira. Sempre nesse dia surge a dúvida se a comemoração deve incluir não somente os astrônomos profissionais mas os amadores também. Para tentar resolver a dúvida, devemos antes discutir um pouco sobre o significado próprio dos nomes usados para designar a ciência da astronomia e a prática da observação do céus "sem compromisso", como realizada por amadores.

Por que as ciências que estudam fenômenos, ocorrências relacionados à vida se chama "biologia", e aquela que estuda fenômenos e ocorrências relacionados aos astros se chama "astronomia"? Além disso, não se fala em uma 'física amadora' ou uma 'biologia amadora'; não se ouve falar (em clubes) de 'físicos amadores' ou 'biólogos amadores', então, porque existiria 'astronomia amadora'? 

A julgar pela disposição das palavras, o certo seria substituir "astronomia" por "astrologia" (no mesmo sentido de "biologia"), enquanto que o significado presente de "astrologia" deveria ser "astromancia" (de 'mancia' que significa 'adivinhação, ou seja, a astromancia seria a prática da adivinhação futura pela observação dos astros). 

O mesmo ocorre com o uso do temo 'astrônomos amadores' para designar pessoas que têm interesse diletante pelos astros. De fato, a astronomia amadora nada tem de científica na acepção correta desse termo porque a atividade dos 'astrônomos amadores' apenas guarda com os astrônomos profissionais o objeto da observação dos astros. Astrônomos amadores, com raríssimas exceções, não estão envolvidos com o desenvolvimento ou exploração ativa de um paradigma científico ou teorias criadas para explicar fenômenos celestes.

De fato, pode-se destacar três "áreas de atuação" para astrônomos amadores:
  1. Especialização na aquisição de imagens de corpos celestes por meio de equipamentos construídos amadoristicamente ou adquiridos no mercado. São os "imagers" em inglês;
  2. Dedicar-se ao ensino e divulgação de astronomia para crianças, jovens e adultos;
  3. Colaborar com alguma campanha de observação no levantamento de dados em rede para uso por profissionais (estrelas variáveis, cometas, análise de dados online de projetos de 'big science': telescópios espaciais etc) ;
Recentemente, surgiu uma quarta classe de 'interessados em astronomia', que não observam nada no céu, mas passam horas na frente de computadores replicando mensagens e textos de material sobre astronomia e imagens astronômicas. De qualquer forma, a chance de uma contribuição efetiva ao progresso da ciência astronômica só é relevante com o terceiro grupo listado acima e, mesmo assim, na dependência das descobertas serem validadas por algum profissional.

Apenas porque têm um interesse diletante pelo céu, quando chegam mesmo a desenvolver algumas técnicas de observação, ou se valem de recursos tecnológicos semelhantes a de astrônomos profissionais, não os coloca no mesmo patamar de atividade desses últimos...

Porém, muitos diletantes em astronomia amadora acabam fazendo eco a vozes do cientificismo ingênuo de nossa época e pregam uma 'religião cética', quando pretendem extrapolar as descobertas específicas da ciência astronômica para qualquer outro fenômeno. Mas,  ciência de verdade nada tem a ver com esse cientificismo. Ciência é uma atividade complexa, que exige anos de treinamento e dedicação e que não se resume a tirar algumas fotos do céu ou fazer um relatório de observação.

Mas, existiria um nome mais preciso para designar a prática da astronomia amadora conforme as três classes descritas acima? Uma boa sugestão seria talvez um neologismo como 'astrofilia': astrônomos amadores seria 'astrófilos' ou praticantes da 'astrofilia' (sem o termo amador adicional, 1).

O fato é que, consagrado pelo uso e sem nenhuma referência à lógica da semântica original dos radicais, a atividade de 'astronomia amadora' está incorporada em parte ao imaginário popular como uma prática científica, mas ela verdadeiramente não é. Isso não muda em nada o fato de que as comemorações do dia 2 de dezembro devem, merecidamente, abarcar todo os interessados, sejam eles profissionais ou meros amantes do céu.

Referências

(1) Esse nome parece ter sido adotado por amadores italianos. Ver http://www.astrofili.org/

18 novembro 2013

Fotometria do cometa Ison (Novembro de 2013)

Fig. 1 Imagem de 14 de Novembro com a presença do cometa Ison. Problema: com base nesta imagem, qual a magnitude do cometa? Imagem obtida em Barão Geraldo, Campinas, SP.
Finalmente, o dia 14 de Novembro permitiu o primeiro registro fotográfico do cometa Ison, como visto desde Campinas, SP (figura 1). A imagem mostra uma pequena mancha esverdeada em meio às estrelas da constelação da Virgem. Esse registro fotográfico, por mais simples que pareça, contém em si informação suficiente para determinar a magnitude (ou brilho) do cometa. 

Vamos mostrar aqui um método prático (fazendo jus ao nome do blog) de se estimar essa magnitude. A imagem da Figura 1 já identifica diversas estrelas na vizinhança do cometa. A magnitude dessas estrelas é conhecida. Como podemos fazer para estimar a do Ison? O método aqui descrito é semelhante à estimativas feitas pelo olho, quando se compara o brilho a ser inferido com duas estrelas de magnitude maior e menor que o do astro, obtendo-se um resultado por interpolação.

Sem muitos detalhes, passamos a descrever o método, que é baseado na extração de informação de brilho contida na imagem. Antes de tudo, convém listar as magnitudes (como dada pelo Stellarium) para as estrelas listadas na Fig. 1, em ordem decrescente de brilho:

m(X Vir) = 4.65
m( ψ Vir) = 4.75
m(g Vir) = 5.55
m(HIP 62743) = 6.45
m(HIP 63225) = 6.9
m(HIP 63240a)=7.25

Observe que colhemos uma amostra de estrelas com ampla gama de variação e sabemos que o cometa tem brilho no intervalo 4.65-7.25 claramente por inspeção visual da Fig. 1.

Extração da amostra de brilho de sensibilização da imagem.

Antigamente, a medida de brilho em placas contendo uma imagem era feita por meio de análise de microscópio. Cada estrela na imagem da Fig.1 era observada sob um microscópio e o analista media a área da "mancha" sensibilizada no filme. Como temos uma imagem digital, podemos fazer isso diretamente sobre a matriz da intensidades. Para tanto, convertemos a imagem da Fig.1 (que é colorida) em um padrão preto e branco (onde os tons de cinza vão de 0 (preto) a 255 (branco), ou formato 8-bits).

Extraímos um pedaço da imagem por meio de um algoritmo de análise. No nosso caso, usamos o software MathCad que permite a manipulação de imagens inteiras ou pedaços dela. Por exemplo, a Fig. 2 traz os mapas em tons de cinza do cometa na foto da Fig.1, de ψ Vir e de X Vir para um quadro com 20 X 20 pixels. Note que a imagem não aparece circular mas ovalada, por causa da exposição de 8 segundos e o uso de tripé sem acompanhamento.
Fig. 2 Matrizes de intensidade de amostras da imagem da Fig.1 convertida em preto e branco, centrado em cada elemento indicado e cobrindo uma área de 20 X 20 pixels. A estrutura 'ovalada' se deve ao movimento do objeto durante a exposição de 8 segundos.
Há uma outra maneira de representar o 'mapa' de intensidade da fig. 2. Através de um gráfico 2d de curvas de intensidade ou superfícies 3d de alturas. Nesse último caso, cada pixel representa um paralelepípedo com altura igual ao tom de cinza do pixel. Essa representação pode ser vista na fig. 3 à direita, junto com o mapa de contorno de intensidades em 2d para o cometa Ison (ou seja, a representação de tons de pixel do primeiro frame da Fig. 2).
Fig. 3 Esquerda: curvas de nível de intensidade para o cometa Ison (mapa 2d). Direita: representação 3d onde cada tom do pixel corresponde a uma altura. O brilho é dado, por exemplo, pela soma das alturas de todos os 'blocos' que tenham altura acima de um limiar escolhido.
O brilho fotográfico do objeto pode ser tomado como sendo igual a soma de todas as 'alturas' no mapa de intensidade que estão acima de certo limiar. No nosso caso, escolhemos esse limiar de forma que a função de brilho seja proporcional (ou inversamente proporcional) à magnitude das estrelas escolhidas.

O cálculo do brilho pode ser feito por meio da seguinte função, que chamamos de meas(image,limiar) (escrita em código MathCad, aqui image é a matriz de intensidade de entrada):


 Chamamos de B o brilho extraído a partir da contagem dos pixels submetidos à filtragem do limiar (ou seja, o valor resultado de meas(image, limiar)). Para a fig. 1, o resultado com limiar = 107 foi:

B(X Vir) = 5379
B( ψ Vir) = 5379
B(g Vir) = 3480
B(HIP 62743) = 1312
B(HIP 63225) = 915
B(HIP 63240a)=107

A curva de calibração da imagem e, finalmente, a magnitude do Ison

O próximo passo consistem em plotar em um gráfico os valores de B versus a magnitude (fornecida anteriormente). Cada ponto azul da Fig. 4 é uma estrela na lista usada para calibração. Assim, no eixo x podemos ler a magnitude visual usada e na ordenada o brilho (conforme calculado acima para a função de brilho). 

Fig. 4 Reta de interpolação dos dados (função de brilho versus magnitude). Com base na curva que melhor interpola os dados, a magnitude do Ison pode ser calculada a partir de seu brilho estimado da imagem.
A reta tem a equação B(mag) = a + b*mag, onde:

a = 15100
b = -2082

Esses valores são extraídos a partir de uma interpolação linear feita sobre os pontos do gráfico da Fig. 4. Pela aplicação do superfície de intensidade do cometa (fig. 3) usando o mesmo limiar obtemos:

B(Ison)= 3233

Portanto, a magnitude do cometa será dada por:

mag(Ison)=[B(Ison)-a] / b

Substituindo os valores na equação obtemos:

mag(Ison) = 5.7.

Essa é a magnitude estimada com base na imagem obtida da Fig. 1.

Premissas e observações 

Alguns comentários são importantes sobre o que aqui descrevemos:
  • Usamos valores de magnitude visual, enquanto que a CCD da câmera fornece brilho proporcional à magnitude fotográfica;
  • Há diferenças, portanto, entre as magnitudes e as correspondentes funções de brilho por causa das cores dos objetos fotografados (para o olho humano um objeto com certa cor pode ser mais brilhante do que para a CCD);
  • Se mais de uma imagem fosse novamente analisada, é provável que o brilho estimado não seria exatamente igual ao obtido. Isso ocorre por causa de erros no registro, flutuações de intensidade incontroláveis no CCD;
  • O processo de conversão para preto e branco altera as intensidades de entrada;
  • Podemos usar outras funções para estimativa do brilho, mas a relação entre a magnitude e o brilho pode não ser linear como mostrado na Fig. 4;
  • Se usarmos outro valor de Limiar, p. ex, 106, a magnitude obtida é igual a 5,68 (ao invés de 5,70). O método é sensível ao valor de intensidade usado, mas a variação está no intervalo +/-0.03;
  • O correto seria tomar várias imagens e aplicar, de forma automática, o método para cada uma delas. Tomar a média e estimar o erro. 

Nosso objetivo aqui foi apenas mostrar como é feito - de forma grosseira - as estimativas de magnitude sem dependência com o olho humano. Esse método pode ser aplicado para outros objetos, por exemplo, estrelas variáveis, com vantagens porque é uma estimativa totalmente numérica e não depende de julgamento psicológico do observador.

Nossa estimativa para a magnitude do cometa Ison em 14/11/13 as 07:15 UT foi, portanto, 5,7+/-0,03.

Referências






13 novembro 2013

Cometas em 2013: em tempos de ISON quem brilha mesmo é LOVEJOY

Com a aproximação do periélio do Cometa C/2012 S1 (ISON) cresceu o interesse pela busca de cometas. Estão anunciados quatro cometas para Novembro de 2013: o esperado ISON, o cometa C/2013 R1 (Lovejoy), o cometa Encke e uma 'variedade' do LINEAR.

Fig. 1 Mapa da posição do cometa C/2013 R1 em 11/11/2013.

Fig. 2 Aspecto do cometa c/2013 R1 como visto por um binóculo. A data é 11/11/2013 as 05:00 do tempo local (07:00 TU).
Acordamos no dia 11 de Novembro  último para tentar observar pelo menos os dois mais brilhantes desses. Na primeira tentativa usando um binóculo 15X70, não foi difícil divisar o C/2013 R1 próximo à cabeça do Leão, como indicado pelo mapa da Fig. 1. Ele estava bem próximo da estrela  κ Leo como mostrado por esse mapa. 

A Fig. 2 traz uma imagem do cometa Lovejoy feita com uma lente de 300 mm de distância foca a 8 segundos de exposição apenas para registrar a ocorrência. A estrela assinalada com o '87' é a HIP 45897, que tem magnitude 8,7 para comparação. Era visível a presença de uma coma bem pronunciada, embora nenhuma cauda fosse perceptível.

Em vão procuramos pelo ISON, embora tivéssemos feito um mapa semelhante para buscá-lo na constelação de Virgem bem próximo a um par de estrelas Zeniah (η Vir) e 13 Vir. O problema? Estando muito baixo do horizonte, sua posição o coloca muito próximo do brilho da aurora. Junte a isso a poluição da cidade de Campinas e não temos uma quadro favorável a sua observação. Como ele ainda não desenvolveu o brilho necessário na data, a observação com binóculo não foi possível. Isso soa como uma decepção, afinal o tal cometa foi anunciado com muita antecedência, mas não pode ser visto facilmente na data. 

No meu entendimento, a campanha de anuncio do C/2012 S1 foi um total fiasco. À medida que seu brilho aumenta (conforme uma curva de luz teórica) ele se aproxima cada vez mais do sol e do brilho da aurora, estreitando bastante sua janela de observação que deverá ficar para o final do mês de Novembro.

Um belo registro dos dois cometas pode ser visto, porém, na Fig. 3 feito em 9 de Novembro de 2013. Parabéns aos observadores Paulo Régis, Luidhy Santana, João Melo, Hilbermon Almeida e Evandro Silva pelo registro feito em Paramoti, CE.

Fig.3 Registro do cometa ISON e o Lovejoy feito em Paramoti, Ceará. Créditos: Paulo Régis, Luidhy Santana, João Melo, Hilbernon Almeida e Evandro Silva. Refletor Schmidt-Newtoniano, 250mm, f/4, CCD Atik. 100 segundos cada imagem. 9 de Novembro de 2013.   
Saiba mais

Para observar o cometa C/2013 R1 ou Lovejoy, use este mapa aqui.