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28 outubro 2012

E pur si muove!


Texto de 'E a Luz se Fez - o Romance da Astronomia' de Rudolf Thiel. Ed. Melhoramentos. "O Pioneiro Galileu".

Na Academia Florentina, Galileu falou, perante sábios, eclesiásticos e príncipes, da verdadeira significação dos seus descobrimentos: eles ilustravam admiravelmente o sistema de Copérnico: a Lua, um globo como a Terra, com mares e montanhas; os planetas, esferas como a esfera terrestre, com dia e noite; Júpiter, um sistema solar em miniatura; "quem pode duvidar de que a Terra gire em torno do Sol, como um dos planetas ?"

Se alguém lhe opunha Aristóteles, Galileu replicava asperamente: "Na ciência, a autoridade pessoal nada prova. A natureza ri-se dos dogmas. Aristóteles considerava a Terra centro do universo; a luneta mostra a qualquer pessoa que ela gira em torno do Sol."

A autoridade de Galileu se tornara tão grande, que reduzia os contraditores ao silêncio. Mas um dia, a grã-duquesa mandou-o chamar. O confessor a alarmara: a doutrina de Copérnico desmentia a Bíblia. O pesquisador estava preparado para essa objeção:

“A tese de que Josué parou o Sol e não a Terra não deve ser considerada uma revelação no que concerne à natureza. A Bíblia não contém nenhuma astronomia; não figura nela sequer o nome dos planetas. É absolutamente certo que a Sagrada Escritura não pode errar; mas podem errar os intérpretes. Seria blasfêmia tomar ao pé da letra as passagens da Bíblia relativas à cólera divina, ao ódio e ao arrependimento do Senhor; todos concordam nisto. Da mesma forma, não se devem interpretar literalmente as passagens da Bíblia que não coincidem com a ciência. Efetivamente, as leis da natureza cumprem-se com exação absoluta; e as leis da natureza também são criados por Deus.”

A grande dama convenceu-se; convenceu-se o confessor. Em breve, porém, monge esbravejava do púlpito contra a heresia de Galileu. A Ordem dominicana tomou a si o caso e levou-o à Inquisição romana.

Galileu indignado, recorreu ao grão-duque: “De pura inimizade contra mim, quer-se converter Copérnico em herege. O seu livro vem sendo tolerado há sessenta anos; agora talvez o proíbam, só porque eu o defendo.”

O grão-duque recomendou-lhe que fosse pessoalmente a Roma e ali mobilizasse as suas numerosas amizades a favor da boa causa. Para lá seguiu o sábio qüinquagenário e, à maneira de cruzado, empreendeu a guerra santa, visitando grão-mestres de ordens, bispos e cardeais, discutindo noite após noite, com espírito, graça e ponderação. Mas colheu apenas essa advertência: “Pensai vós o que vos aprouver; desisti, porém dessa propaganda que só vos pode prejudicar.”

“Se a honra da Igreja corre perigo – replicou ele – não me é lícito ter consideração para comigo. Exijo que se submeta à prova a teoria do movimento da Terra, bem como toda a minha demonstração, antes de condenar Copérnico.”

O papa ordenou à congregação dos jesuítas se pronunciasse; o parecer foi negativo: os descobrimentos de Galileu também não provam a teoria. Depois disso, o livro de Copérnico foi proibido provisoriamente, até ser correto, mediante o acréscimo de que se tratava de hipótese não provada.

A Inquisição incluiu o cardeal Belarmino de comunicar a Galileu com o tato possível, que daí em diante deveria abster-se de sustentar a teoria do movimento da Terra, quer verbalmente, quer por escrito. A pílula amarga foi-lhe adoçada com a declaração de que ele causara a melhor impressão ao Santo Ofício e que, em caso de outro ataque, o próprio Santo Padre o defenderia.

Mas Galileu não se preocupava consigo. Agira, movido de puro patriotismo, como italiano e como católico. A verdade, descoberta por um cônego católico, não haveria de triunfar na Alemanha e por obra de sábios protestantes com Kepler. Não; deveria vencer e por obra da ciência italiana, para felicidade da Igreja conquanto esta recalcitrasse em aceitá-la. O mundo havia de saber que Roma continuava a favorecer a inteligência e não sem razão fazia jus ao título de coração e cérebro da cristandade.

Por isso custava-lhe a tolerar a derrota. Se alguma vez pronunciou a famosa frase: “E pur si muove...”, “Apesar de tudo, ela se move...” Galileu a disse depois de rigorosa proibição de falar. Não pensava em se submeter definitivamente ; espreitava apenas a oportunidade em que lhe fosse possível quebrar o armistício imposto.

Mas a oportunidade se fez esperar quase dez anos – anos de tortura para esse temperamento rebelde. O grande acadêmico era por natureza galo de rinha, que tratava o próprio debate erudito como um duelo, como se estivesse em jogo a honra e a vida, com antagonismo apaixonado, com arrojo temerário, sem refletir na escolha dos meios. Os seus antigos colegas temiam-lhe a língua mordaz e, certa vez, o tribunal condenou-o a abster-se de usá-la. Mais uma vez era-lhe vedado o uso da palavra, e ele ralava-se na jaula, inibido de observar, de experimentar, de pensar no que quer que fosse, exceto na verdade posta fora da lei, na verdade do movimento da Terra. Nalguns escritos combativos daqueles anos, a tensão inaudita vibra, descarrega-se em explosões, dialeticamente soberbas, lingüisticamente fascinadoras, objetivamente falhas. Criou com isso inimigos; mas, ao mesmo tempo, um público para a sua obra seguinte, a mais impressionante que já saiu da pena de um cientista.

Galileu contava sessenta anos, quando foi eleito o novo papa, Urbano VII, que não era senão o cardeal que lhe dedicara o ode “Louvor Perigoso”. Então ou nunca! Galileu foi a Roma. Seis vezes foi recebido em audiência. Seis audiências de mais duma hora cada uma. Embaixador algum poderia vangloriar-se de semelhante privilégio.
Desenhos de Galileu da Lua. Fonte: wikipedia.

Galileu solicitava o reconhecimento do sistema copernicano. “Ele não tardará a ser adotado nos países protestantes; então a ciência católica será menosprezada, a Igreja será tachada de obscurantismo. ”

O papa não perdeu a calma: “Essa teoria não foi declarada herética; nem eu a considero tal; apenas temerária. Não creio que possa ser provada.”

Galileu exibiu-lhe triunfalmente a prova que já então encontrara: o fluxo e o refluxo das águas, a maré. Assim como numa embarcação que oscila a água se balança dum lado a outro, assim o mar sobe e recua, porque a Terra se move.

O papa confessou que não compreendia; mas a hipótese não se lhe afigurou demonstrável. Nisso julgava com acerto, porque só o movimento da Terra não produz a maré. Há necessidade doutra força, a atração da Lua. Galileu deveria ter percebido que a sua prova não se sustentava. Havia naquele tempo só uma: a explicação copernicana do movimento retrógrado dos planetas. Galileu não a mencionara; sentira talvez que o homem comum não está a altura para refletir tão profundamente, que mais facilmente se deixa persuadir por meias verdades, por semelhanças e imagens do que convencer por idéias próprias exatas.

Com esse papa, Galileu errara o caminho. Após as seis audiências, Urbano VII pôs termo à discussão vã, dizendo: “Deves concordar, amado filho em que o Todo Poderoso pode também ordenar ao mar que ondule, sem que por isso se mova o fundo do mar, embora não compreenda o entendimento humano.”

O velho sábio curvou-se em silêncio, beijou o pantufo pontificial e regressou a sua terra.

Não desistia. Trabalhou cinco anos obstinadamente, prodigalizando todas as suas energias espirituais, com paixão e lógica, com espírito e eloqüência, com todas as seduções da linguagem, no seu “Diálogo sobre os dois sistemas do Universo”. Com isso esperava constranger a Igreja, apesar da sua resistência, a uma aliança com a ciência. Aniquilada pelos seus argumentos, a Igreja concordaria em que a Terra se move. Galileu refletiu em como lhe facilitaria a capitulação: no prefácio, declararia a teoria de Copérnico uma hipótese não provada, como o exigia a autoridade eclesiástica; e terminaria com a frase que o próprio Urbano VII lhe respondera.

Assim originou a primeira ciência popular, moldada pelo próprio técnico em diálogo vivo, dramático, sempre excitante, interessante, sedução irresistível para os profanos, aliciando-os a entrar com o pensamento, as descobertas, o conhecimento, no que o gênio pensou, descobriu, reconheceu. As experiências são descritas tão intuitivamente que não se sente necessidade de comprová-las. Percebe-se logo: não podia ser diferente.

Por exemplo: a interrogação a que Copérnico não encontrara resposta: por que o eixo terrestre está constantemente voltado para o polo: “Coloquem uma esfera de madeira num recipiente com água. Segurem o vaso com a mão estendida e girem sobre si mesmos. Ver-se-á então a bola de madeira girar sobre si mesma em sentido contrário, isto é, conservando sempre a direção do seu eixo, como faz a Terra no sistema copernicano”.

Ou a eterna objeção de que a rotação da Terra influa no curso das nuvens, no vôo dos pássaros, nos tiros dos canhões, na queda de pedras: “Proponho que me acompanheis ao camarote duma grande embarcação. Ali estão mosquitos, jogadores de bolas e um aquário onde caem do alto gotas de água. Esteja o barco parado ou navegando regularmente, os mosquitos voam com a mesma facilidade de parede a parede; as bolas são atiradas, com a mesma força, em todas as direções, os peixinhos nadam, tranqüilamente; os pingos de água caem perpendicularmente no mesmo ponto. E de nenhum destes fatos ninguém pode adivinhar se o barco está parado ou em movimento; tanto menos o podemos até dizer da Terra”.

Eis, já formulado, o princípio da relatividade. Com essa obra, Galileu se tornou um clássico da literatura italiana, pois foi o primeiro cientista do seu tempo em escrever, não em latim, e sim na língua materna que dominava melhor do que ninguém. Outrora, como poeta, começara a corrigir Tasso; compunha comédias, improvisava canções, com acompanhamento improvisado ao alaúde. E, justamente por ser dotado de talento poético, obteve êxito onde Kepler falhara: em levar a teoria de Copérnico à vitória.

A geração seguinte criou-se com a nova imagem do universo, segundo a concepção de Galileu. Costumou-se a zombar das objeções, antes que elas fossem definitivamente refutadas; enfeitiçada por essa obra prima, deixou de exigir provas exatas; e, como estas iam sendo apresentadas, ninguém mais se interessou por elas.

Essa mudança de mentalidade, verdadeiro alvorecer dos tempos modernos, operou-a o velho mago, com dialética não raro duvidosa, impondo-se à crença mais do que persuadindo, porque ao mesmo tempo implantava nos cérebros outro modo de pensar: a confiança nas experiências, em lugar na confiança nas autoridades, o espírito hodierno do estudo da natureza.