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08 outubro 2020

Uma rara monografia sobre Marte por R. R Freitas Mourão

 

Podemos calcular, portanto, que a observação telescópica nas condições mais favoráveis será um disco - equivalente, em superfície, a 16 luas cheias. O número de detalhes observáveis, então, com um tal aumento será teoricamente imenso. Para o astrônomo, entretanto, ver "tudo o que se pode ver" sobre a superfície de Marte, serão necessárias observações persistentes, noite após noite, no fim das quais seus olhos tornar-se-ão cada vez mais espertos, até que, por fim seja fácil distinguir pormenores superficiais completamente invisíveis no começo. (R. R. de Freitas Mourão, "O Enigma Marciano").

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão (1935-2014) foi um conhecido astrônomo brasileiro e diretor do Observatório Nacional. Dotado de uma cultura imensa, ele escreveu dezenas de obras relacionando a Astronomia com inúmeros outros temas. 

Já escrevemos aqui, na ocasião de seu falecimento, uma descrição de sua bibliografia. Em nossa biblioteca particular encontramos um livro antigo de nossos pais, a coleção "Ciência Atraente e Recreativa" da década de 50, editada por Ary Maurell Lobo (quinto livro), um interessante ensaio de Mourão, apresentado como aluno do Colégio Andrews no Rio de Janeiro. 

Trata-se do ensaio "O Enígma Marciano" (Fig 1 e ref. 1), na grafia típica da época. Ainda com 21 anos, seu estilo parece não ter se modificado. Isso indica a precocidade de sua personalidade e que a metodologia que ele adotaria para escrever suas obras já estava definida desde muito cedo.

Página Inicial do Ensaio de Mourão sobre Marte
Fig. 1 Página inicial do ensaio de Mourão sobre Marte.

O editor da obra, que também era professor de Mourão, afirma na introdução não ter realizado nenhuma alteração no manuscrito original. Embora sem contar com uma lista de referências bibliográficas, o texto é repleto de citações, mostrando que Mourão já tinha, desde muito cedo, acesso a uma grande quantidade de informação sobre a astronomia marciana ou "aerografia". 

O texto é interessante para historiadores da Astronomia Nacional, porque revela o conhecimento que tínhamos então - na era pré-espacial - sobre Marte. Sua relevância cresce por representar a opinião de um autor nacional - ainda que muito jovem. Assim, pela comparação entre o que sabemos hoje e o texto de Mourão, fazemos ideia do quanto avançamos nesse conhecimento ou não. 

Mourão mistura informações de então - colhida de nomes profissionais como G. Vaucouleurs e G. Kuiper - com dicas sobre como observar marte, bem como conexões com a mitologia e a história da Astronomia. Na época, sobravam teorias sobre como uma possível vegetação poderia ser responsável pelas alterações de cor e tonalidade observadas na superfície de Marte, todas elas realizadas por meio de telescópios terrestres e sem a ajuda de sondas espaciais. 

Exemplos: sobre a descoberta dos satélites de Marte por A. Hall, descreve Mourão:
Em 11 de agosto (1877), Hall, juntamente com a sua secretária (que por sinal era a sua esposa), e, com ele, também se mostrava bastante interessada nessa pesquisa), observa o primeiro satélite de Marte (Deimos). Como nas cinco noites subsequentes não faça bom tempo, no dia 17 é que ele volta a pesquisar as vizinhanças de Marte, encontrando, então, o segundo satélite (Fobos). (p. 161)
Fig. 2 Desenho clássico de Marte e especulações de Mourão
na legenda sobre a superfície marciana.

Especulações da época estão presentes na monografia (Fig. 2), demonstrando as crenças entre astrônomos sobre a dinâmica da superfície de Marte. Um autor muito citado por Mourão é Gérard Henri de Vaucouleurs (1918-1995). Por exemplo:
São tais variações de coloração as que maior interesse despertam, por estarem estreitamente ligadas à existência de uma possível vegetação no planeta. G. Vaucouleurs observou que elas estão relacionadas com a chegada nessas regiões de uma onda de umidade, que se propaga por difusão na atmosfera seca, alternativamente, a partir das regiões polares Norte e Sul ao curso da evaporação vernal dos depósitos de gelo polar. ("Manchas Escuras", p. 165)
essa opinião, de fato, fazia sentido na época, pois era natural imaginar que água evaporada ou derretida das calotas polares (que se podia ver apresentavam modificações visíveis de tamanho) poderia "inundar" os desertos ou estepes secas do planeta e fazer crescer a vegetação. Hoje sabemos que parte das calotas polares se derrete e é formada por água, mas opinião mudou desde Mourão sobre a composição das calotas. O fato é que a atmosfera de Marte, sendo muito tênue, não permite esse fenômeno de "difusão de umidade" especulado por Vaucouleurs. 
  
Sobre o aspecto de Marte ao telescópio, Mourão escreve:
Examinado ao telescópio, três quartas partes aproximadamente da superfície de Marte apresentam uma tonalidade rósea ou ocre. Elas são, de um modo geral, bastante monótonas e de grande estabilidade. seu relevo è assaz moderado, pois as deformações observadas atingem no máximo 2 a 3000 metros. Entretanto, algumas vezes, aparecem pequenos pontos brancos em certas partes fixas, que talvez sejam montanhas isoladas, muito altas, capazes de favorecer uma condensação de gelo ou nuvens. Esses pontos esbranquiçados tem sido observados por vários astrônomos, entre eles: Schiaparelli, Jarry-Desloges, Wright, Maggini, Trumpler e Antoniadi. ( "Manchas Claras", p. 168)
De fato, tais ideia se confirmaram. A "Nix Olympica", por exemplo, foi identificada mais tarde como o topo de um dos mais elevados vulcões do sistema solar, o "Olympus Mons" com 21 km de altitude. 


Sobre os canais (Fig. 3), Mourão faz um resumo da polêmica ainda existente na época sobre a existência dos canais marciano. 
Foi no histórico ano de 1977 - marco de uma nova aerografia, como muito bem asseverou o grande Flammarion - que, no Observatório de Milão, Giovanni Schiaparrelli observou traços mais ou menos regulares e finos, atravessando as regiões desérticas do planeta. Na denominação destas formações usou Schiaparelli o vocábulo italiano "canali", no seu sentido de origem (traço, linha etc), que, entrentanto, com o tempo - terrível é a deturpação das palavras! - passou a significar canais artificiais. Logo após, em 1886, o mesmo astrônomo relatava, perante a Regia Academia dei Lincei, o curioso fenômeno de "geminazione", por ele observado, em 1881 e 1882, no qual os canais se desdobravam em outros paralelos. (p. 173)
Mourão descreve a controvérsia (ver ref. 3) e divide os nomes de astrônomos em dois times: os que observaram o fenômeno dos canais e os que não conseguiram ver nada. Mourão cita Domingos Costa (1880-1956) como um dos que não conseguiram ver os canais de Marte (ver ref. 2). 

Fig. 3 Reprodução do famoso mapa de Schiaparelli dos canais de Marte na monografia de Mourão. 

A solução? Segundo Mourão, ela estava na próxima oposição de Marte, que ocorreria no ano da publicação de sua dissertação:
Contudo, a grande esperança para a completa elucidação dos canais é a próxima oposição deste ano, em que se utilizará o telescópio de 200 polegadas, de Monte Palomar - que pode fotografar Marte em exposições de um décimo de segundo ou menos - para se obter um número imenso de fotografias (na oposição de 1954, foram tidadas 8.100 fotografias, nos Observatórios de Monte Wilson e Palomar), que permitirão revelar a existência e a estrutura real dos "canais". (p. 174)
Desnecessário dizer que não houve solução alguma pelo telescópio de Palomar. De qualquer forma, na grande oposição de 2020, homenageamos aqui seu autor que, no cenário nacional presente de desencando e desinformação, está fazendo muita falta.

Referência
  1. R. R. F. Mourão (1956) - "O Enigma Marciano". Ciência Atraente e Recreativa, 5 Livro. p. 157-176. Interessados podem escrever para o autor deste post sobre como obter acesso ao texto integral. 
  2. Sobre Domingos Costa: http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=domingos-fernandes-costa
  3. O que aconteceu aos canais de Marte? http://astronomiapratica.blogspot.com/2015/02/o-que-aconteceu-com-os-canais-de-marte.html

26 julho 2014

Astronomia Brasileira de luto


Texto de Hemerson Brandão (fonte: Facebook)

A Astronomia brasileira perde uma de suas principais estrelas. Faleceu na noite desta sexta-feira (25/07/2014), aos 79 anos, o astrônomo Ronaldo Mourão. Ele sofria do mal de Parkinson e há duas semanas sofreu um AVC.

Assim como Carl Sagan, tive a oportunidade de conhecer Ronaldo Mourão apenas através dos livros. Juntos, eles tiveram grande influência no meu conhecimento astronômico e despertaram o interesse pela divulgação científica.

Perdemos o mestre. Fica o seu legado na forma de textos que buscam despertar o interesse do público geral pela Astronomia.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, nasceu em 25 de maio de 1935, no Rio de Janeiro. Ingressou em 1956 na Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ), onde conquistou o título de Bacharel e Licenciado em Física. Foi Doutor em Ciências pela Sorbonne de Paris. Em 1956, tornou-se Auxiliar de Astrônomo do Observatório Nacional e, em 1968, Astrônomo Chefe. Foi fundador do CARJ - Clube de Astronomia do Rio de Janeiro e o MAST - Museu de Astronomia e Ciências Afins, também no Rio.

Na área de pesquisa estudou sobre estrelas duplas, cometas e asteróides.


Desde 1952, Mourão publicava material de divulgação científica. Nesse meio tempo publicou quase 100 livros e mais de mil textos em vários jornais e revistas. O último livro que comprei foi a edição 2013 do respeitado “Anuário de Astronomia e Astronáutica”. Muitos desses textos continuam sendo a principal referência para quem quer dar os primeiros passos na Astronomia.

Em 1977, foi o primeiro a receber o prêmio José Reis de Divulgação Científica.

Abaixo um depoimento de Ronaldo Mourão sobre sua vida para o projeto “Ciência que eu faço”: